Minha Crônica: “Adeus dona Marli”

Dona Marli Plocharski está de branco, próximo à estante, ao lado da senhora de vermelho, no lançamento do livro Na Teia da Mídia em dezembro de 2011

Essa semana perdi uma das pessoas mais importantes da minha vida. Uma amizade que não foi longa, mas tão intensa que deixou marcas profundas. A perda de dona Marli Plocharski ainda é algo que custo a compreender. Foi tão rápido. E perdi uma das pessoas mais admiráveis que já conheci. Passados alguns dias da sua morte, hoje consegui escrever algumas linhas para desafogar o coração machucado. Espero que gostem, curtam, porque ela merece todas as homenagens!

O mundo chorou essa semana, encharcando ruas, vielas, bairros, telhados na grande Joinville. As lágrimas dos anjos que nos rodeiam lastimavam uma grande perda para a humanidade, mas uma grande conquista para o Criador. Na última terça-feira, 31 de julho, o telefone toca ao amanhecer. Gi acorda e atende. A notícia é triste. Dona Marli Plocharski cansa da luta e nos deixa órfãos de sua bondade. O silêncio é minha resposta. Reverência a tão nobre ser humano. O silêncio, ah silêncio que precede a lágrima que vem aos olhos e se une à chuva que cai pela cidade. Um vazio invade minha alma.

Até agora não sei exatamente o que senti. Um misto de dor, perda, alivio. Não sei. Só agora senti coragem de escrever algumas palavras a essa mulher guerreira, amiga, mãe protetora, esposa leal e cuidadora, cidadã solidária que ajudou a tantas pessoas que faltariam paginas para escrever o nome de todas elas. A gente se questiona, muitas vezes, porque pessoas assim têm deixam o mundo, empobrecendo a humanidade, enquanto outras que não sabem o que é o amor incondicional, amor ao próximo, ficam a fazer maldades por aí. Com a morte de dona Máli, como carinhosamente era chamada por vizinhos, amigos e familiares, todos ficam órfãos. Eu, mais uma vez.

Minha primeira orfandade veio com a morte de meu avô, Helmut Bäehr. Eu tinha 10 anos, e ele tinha me presenteado com a primeira bola, de borracha, daquelas marrons que se usava para jogar handebol na escola. A pé, ele veio do Boa Vista até o Floresta onde morávamos, só para me dar o presente. A simplicidade era sua irmã gêmea. Saudades. Anos depois, já adulto, perdi minha segunda mãe, dona Alcina Ribeiro a quem com amor chamava de Táta. Minha infância passou no terreiro da sua casa de madeira escura, de assoalho, guarda-comida, fogão a lenha, pés de carambola, araçá, pitanga, cereja. Pão com manteiga, rosca, pão feito na chapa, lingüiça assada no fogo. Que perda!

E dona Marli. Quem entende os desígnios da vida? Nada havia entre nós até que um dia, por indicação de uma mulher, ela chega até este jornalista à procura de ajuda. Mal tinha começado minha fugaz passagem pela Conurb, e a recebi ocupando a mesa de reuniões do órgão, sob olhos curiosos. Frente a frente com aqueles olhos azuis, aquele rosto sofrido, a fala fina e nervosa. Ela queria apenas um apoio para dar o primeiro passo na produção de umas cucas, doces, os quais vim a conhecer depois, fazia com uma maestria digna das grandes cozinheiras e confeiteiras alemãs. Mas faltava comprar os ingredientes. Não tive dúvidas, comprei e levei até sua casa.

Lá na pequena casa de madeira da rua Carlos Parucker no Atiradores, enredamos uma amizade que só cresceu ao longo de dez anos. Sob folhagens, flores, pássaros e as telhas de um puxadinho que seria garagem, ela contou suas agruras, sua dor pelo que a família tinha passado pelo uso indevido da imagem de seu filho no caso do Maníaco da Bicicleta. Os problemas psicológicos. O desmoronamento da sua fortaleza familiar, algo muito prezado pelos descendentes alemães. Partiu dali meu trabalho de conclusão do curso de jornalismo, que acabou em livro lançado no final de 2011. Era um pedido dela, uma dívida que consegui honrar. Creio que isso a deixou menos triste, mais leve.

Seu enorme coração invadia minha vida. Vez por outra ligava dizendo que tinha um apfelstrudel para buscar lá. Ou sardinhas recheadas. Talvez uma torta de queijo. Perdi a conta de tantas vezes que ela fez todos os quitutes de aniversários dos meus filhos Gabriel, Lucas e João Pedro. Não negava nada, estava sempre ali, a postos para ouvir, ajudar, fazer. Que amor ao próximo tinha essa mulher! De repente começaram a acontecer coisas boas, e depois ruins. Consegui trabalho para ela no gabinete do deputado Mauro Mariani. Lá ela foi feliz, servindo a todos como se disso dependesse a sua felicidade.

Um dia caiu na rua e quebrou a clavícula. Teimosa, ainda foi trabalhar com dores sem contar a ninguém. Sempre com apoio do amigo comum, Edson Holler, conseguimos atendimento mas fizeram mal a reconstrução. Ela ficou com a mobilidade do braço reduzida. Isso diminuiu sua força e agilidade para preparar os marrecos recheados, perús, jantares, comidas em geral que produzia a pedido de muitas pessoas. Sua vida era a cozinha. Sempre desgostosa com a situação que manchou a imagem da família, a descendente dos Tilp e Schossland – famílias da tradicional Joinville – foi se fechando, entristecendo. Veio a depressão, problemas de saúde com hérnias.

A cada visita eu via que ela não reagia aos nossos apelos. Dizia que tomava os remédios, mas sequer tinha ido ao médico renovar receitas. Cuidava de todos, mas abandonou a si própria. No lançamento do livro estava bem, e junto com sua filha Áurea compareceu ao evento. Todos nós estávamos felizes. Mas neste ano, em abril, sua debilidade física era aparente. Vizinhos e amigos me ligavam para que interviesse, que ela me escutaria. Muitas conversas tivemos, mas ela também fazia que me escutava, mas já estava surda para apelos. Não comia mais. Passava mal. De repente a notícia. Marli está internada no Hospital São José.

Como doeu ver aquela amiga no leito hospitalar, machucada por agulhas de soros, os rins falindo. E ela dizia: “eu ainda vou sair daqui andando Salvador, você vai ver”. Infelizmente não vi. E dói saber que não terei mais aquele olhar carinhoso a me ouvir sobre as tramas da vida, as alegrias e tristezas. Dói não poder receber o telefonema amigo, a voz fina pedindo “vem aqui buscar um strudell”! Era a senha para uma conversa. Dói na alma perceber que uma alma tão leve, boa, de coração puro, nos deixou tão rapidamente. Por isso já disse que não sei o que senti quando veio a notícia de sua partida. Era terrivelmente duro a ver silenciada, inerte, cercada de tubos, maquinas, apitos. À porta da morte.

Questiono-me sobre o que mais poderia ter feito para ajudá-la. Talvez pudesse ter contribuído mais para tirar Marli do caminho escuro da depressão. Não sei. O fato é que agora ela se foi, deixando uma marca eterna em minha alma, em meu coração. No coração de centenas, talvez milhares de pessoas a quem estendeu a sua mão. A quem ensinou sobre a vida. A quem disse verdades, ainda que duras para quem as ouviu. Sentirei para sempre a sua falta. Passarei sempre pela pequena rua Carlos Parucker. Entrarei por aquele portão de madeira, buscando encontrá-la ali, sentada sob a garagem. Ou mesmo na sala.

Tenho certeza que ela está por aqui, a cuidar do seu Ludovico, do Aluísio, da Áurea, da Dayane e do Thiago, seus netos, do Braz seu genro. Muita gente, de tantos lugares se sente órfão dessa grande mulher. Tanta gente que só os seus grandes braços generosos poderiam abarcar. À família, os sinceros votos de pesar por essa perda irrecuperável. Vocês perderam a esposa, mãe, avó. Eu perdi mais uma mãe, uma amiga que me amparou em momentos importantes da minha vida. Serei grato eternamente. Mas fiquem certos que a cada silvo do vento por entre as flores e árvores e cantarolar dos passarinhos na casa que abrigou tanta gente, é ela, Marli Plocharski que estará a nos observar, cuidar e mandar bons fluídos, energia e amor a todos que aqui ficaram. Ela já está ao lado do Criador, e já trabalhando com afinco!

Adeus dona Marli! Com a sua partida, junto foi parte do meu coração. Temos poucos amigos com tanto valor. Sua falta será sentida e muito por todos nós, Gi Rabello, Rayssa, Vó Isolde. Mas sua memória e legado serão para sempre preservados em todos os momentos”.

Autor: Salvador Neto

Jornalista e escritor. Criador e Editor do Palavra Livre, co-fundador da Associação das Letras com sede no Brasil na cidade de Joinville (SC). Foi criador e apresentador de programas de TV e Rádio como Xeque Mate, Hora do Trabalhador entre outros trabalhos na área. Tem mais de 30 anos de experiência nas áreas de jornalismo, comunicação, marketing e planejamento. É autor dos livros Na Teia da Mídia (2011) e Gente Nossa (2014). Tem vários textos publicados em antologias da Associação Confraria das Letras, onde foi diretor de comunicação.

16 comentários em “Minha Crônica: “Adeus dona Marli””

  1. Obrigado Magrid, realmente já faz falta tudo que ela fazia para todos nós. Desde o telefonema, o pedido, o abraço, o carinho, a atenção, e agora, até o silêncio. Todas as homenagens sempre serão poucas para dona Marli. Abração!!

  2. Amigo Salvador, que linda homenagem à D. Marli. Quem a conheceu e conviveu com ela, sabe que realmente era uma grande pessoa. Pessoalmente amava ela, aqueles bolinhos de aipim, que ela fazia para vcs., e eu….escondida de vcs. sempre ganhava alguns. Com certeza deixa um grande vazio em nós.
    bjus
    magrid

  3. Excelente homenagem a verdadeira guerreira Dona Marli, saudades eterna amiga. Desejo a todos que lamentam a sua ausencia força de Deus para processeguir principalmente aos mais próximos…como familiares.

  4. Nossa Vera Godinho, suas palavras encheram meus olhos de lágrimas. É verdade, por aqui não se fez justiça ainda contra quem maculou a honra, a imagem, e destruiu vidas de pessoas comuns, trabalhadoras. Mas o universo é maior que imaginamos, e a justiça vai acontecer em algum momento. O sofrimento é perder pessoas como dona Marli. A vida dela estava colada à da minha família. A sua dor era compartilhada conosco, as suas vitórias também, os seus doces, tudo. Creio sim que a energia dela está entre nós, e me sinto privilegiado, e agradeço imensamente por ter vivido ao lado de uma guerreira como Marli Plocharski, um exemplo de mulher, mãe, amiga, cidadã. Obrigado pelas palavras Vera!!

  5. Áurea, vamos todos continuar regando sim, para que essas sementes espalhadas mundo afora venham a brotar de generosidade, solidariedade, amor ao próximo, tudo em nome de um mundo melhor. Obrigado a vocês pela abertura que deram em suas famílias, nos recebendo com tanto carinho, sempre. Abraços a todos por aí!

  6. Este caso me lembra muito o caso da menina Gabriele, que pra mim ficou mais como o caso Oscar, pois os dois personagens gravemente atingidos neste fato da vida real se fundiram de maneira tal que a morte da menina quase se esquece ao lembrar a injustiça ela qual passou o rapaz. coincidentemente as mesmas pessoas que injustiçaram o filho de dona Marli o fizeram com Oscar do Rosário que em mais uma coincidência perdeu sua avó durante toda aquele inferno que transformaram a vida daquela família….Mas eu me solidarizo com o Sr.pela perda desta pessoa que com certeza significava muito para o Sr.. Eu entendo, e sei o quanto sofremos junto quando as pessoas se aproximam de nos e nos sentimos responsáveis por elas, entram em nossas vidas, acho que por uma atração de Energia sem explicação e acabam fazendo parte de nossas vidas. Pode ter certeza não encostraremos explicações aqui nesta dimensão, pois existem muitas barreiras e somos muito pequenos para entender e vence-las. O Sr é um homem feliz por ter podido estar ao lado de uma pessoa como ela, não só pela pessoa física, mas pela Energia superior que ela devia trazer em si, e que devera lhe acompanhar em sua jornada! O Sr. é um Privilégiado!

  7. Obrigado Soninha, ela era uma pessoa muito especial, e agora é um espírito do bem espalhando amor ao lado do Criador. Obrigado pela participação e leitura, fico feliz, abraço!!

  8. Salvador, me emocionei ao ler sua crônica. Bela homenagem a essa mulher especial. Parabéns.

  9. Amigo Mário Cezar, isso já aconteceu. E realmente ela deixou muitos ensinamentos para mim, emoções que não há como valorar. Meu receio é que ela tenha partido sem aquele carinho, aquela palavra que faltou. Mas é por aí, o sorriso dela aparece em meus pensamentos, e sei que ela está entre nós, assim fico mais tranquilo. Valeu pelas palavras amigão, você é outra alma poderosa que está sempre aqui para dar o remédio correto a outra alma ferida. Abração gigante em você e em tua família.

  10. Léla, é verdade! E nem coloquei meu pai, meus dois irmãos que sempre amei. Esses ficam para outro momento especial também. Fico lisonjeado que meus textos façam algo nas pessoas, para o bem. Quer curar um pouco suas feridas, escreva amiga, escreva muito! Obrigadão por participar!

  11. Obrigado dona Mila Ramos, já tivemos contato quando a senhor comandou a Fundação Cultural e assim o Festival de Dança, nos tempos em que eu representava a Coca Cola. Parabéns pela reportagem no Noticias do Dia, e muito obrigado pelo elogio. Na maioria das vezes a forma de jorrar minhas emoções é pelas palavras. Dona Marli deixou um vazio imenso, uma perda gigante. E só com palavras que não pude dizer a ela, por ter entrado em coma, é que penso render a ela alguma homenagem por tudo que fez por mim. Obrigado dona Mila, valeu por ter curtido meu Blog, é uma grande honra!

  12. Salvador, tenho certeza que mesmo com a tristeza da perda, toda vez que lembrar da Dona Máli, sem perceber, se desenhará um leve sorriso nos seus lábios.Esse é o melhor sorriso, é o “sorriso da alma”. Ele é a expressão expontânea do melhor dela que ficou em você. E, com certeza, ela partiu feliz com o melhor de você que ficou com ela. Abraços

  13. É, meu amigo…. só quem perde pessoas especiais consegue escrever com emoção suficiente para fazer lágrimas rolarem, do outro lado da linha, de pessoas que também já perderam muitos amigos amados.

  14. Que bela crônica! Vc jorra , pelas palavras, uma dor imensa. Parabéns por saber transmitir seus sentimentos com excelente estilo, linguagem segura e bela.

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