“Meu gênero é feminino. Sou mulher”, fiz primeira coordenadora travesti da SDH

“Não me sinto inserida, me sinto excluída, mesmo ocupando um cargo como eu ocupo”.

Esse é o desabafo de Symmy Larrat, a primeira travesti a ocupar a função de coordenadora-geral de Promoção dos Direitos LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais) da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.

A paraense, de 37 anos, faz parte de uma minoria de trans que conseguiu superar os obstáculos do preconceito para estudar e ocupar um lugar no mercado de trabalho. Até se formar em comunicação social e chegar ao escritório político em Brasília, percorreu um longo caminho. Como a maioria dos homens e mulheres transexuais e travestis, Symmy primeiro teve que se entender, aceitar-se, para só então se assumir.

Em entrevista exclusiva à Agência Brasil, Symmy fala da realidade e das lutas desse grupo que ainda vive à margem da sociedade – a maioria condenada à prostituição, violência e morte precoce.

Homens e mulheres transexuais e as travestis são pessoas que nascem com um sexo biológico, mas se identificam e reconhecem como sendo do outro gênero. “Os transexuais se incomodam com o sexo biológico e almejam a cirurgia”.

As travestis não rejeitam seu sexo biológico. “Entendem que podem assumir o gênero feminino tendo um sexo masculino, e que isso não é conflitante”, explica Symmy. “Meu gênero é feminino e eu sou mulher. A minha genitália não me faz homem”, ressalta.

De família católica e com uma irmã mais velha, ela afirma que desde criança já tinha noção de que não era como a maioria, e os parentes e colegas de escola percebiam. Sempre preferiu as bonecas da irmã aos próprios brinquedos, por exemplo.

“Eu sabia que se falasse como eu me sentia eu seria recriminada ou tratada de forma diferente. Mas eu não tinha nitidez de que eu era uma menina no corpo de um menino, até porque a criança não trata a questão dessa forma.”

Quando chegou à puberdade, teve mais certeza do que queria ser. “Quando eu soube do processo hormonal, eu tentei. Tinha 15, 16 anos. Com o tratamento, as mudanças ficaram notórias”. Foi então que Symmy decidiu contar à mãe como se sentia. Ela não foi aceita e saiu de casa.

Apesar da rejeição, Symmy não foi abandonada. Um tio a aceitou. “Acho que minha família pecou mais por ignorância do que por preconceito motivado pelo ódio”, lembra. A família fez o que podia para tentar “curá-la”. “Fiz um ano de psicanálise e tinha que frequentar aulas de futebol e a Igreja.”

Aceitação
Passar por tudo isso deixou Symmy mais segura, aumentando a certeza de quem era. “Com mais convicção, conversei com a minha mãe e ela me aceitou de volta em casa, dizendo que entendia que eu era gay“, contou.

Era isso que Symmy achava também, não conhecia outras classificações. A mãe pediu que ela não fosse “pintosa”, ou seja, que ela evitasse trejeitos femininos.

“Eu disse que não tinha como”, conta. Então a mãe disse que podia ser feminina, mas não deveria se vestir como mulher. “No princípio aceitei, mas logo comecei a me transvestir para sair à noite, fazer shows. Eu já não queria a imagem masculina e saía à noite para extravasar a minha identidade reprimida.”

Symmy Larrat
No dia a dia, Symmy escondeu sua identidade feminina até terminar o curso na Universidade Federal do Pará.

“Frequentava o gueto do gueto, porque eu não queria que as pessoas que eu conhecia me vissem como travesti, mas, ao mesmo tempo, era muito doloroso para mim ver uma imagem que eu não queria.”

O primeiro passo foi contar a decisão para a mãe. “Chamei ela a um restaurante e contei. Nessa época eu tinha voltado a fazer tratamento hormonal e as pessoas percebiam, mas eu não tinha assumido para ninguém”, conta. “Assumir foi muito libertador, mas tive que ir pra rua.”

Prostituição com diploma no bolso

Nessa época, a travesti buscava uma colocação no mercado de trabalho, mas as portas estavam fechadas. “Era explícito, o tempo todo. Eu andava na rua durante o dia e as pessoas me recriminavam porque achavam que aquele horário não era pra mim, é como se tivesse um toque de recolher para os diferentes”. Ela não conseguiu trabalho. “Tive que me prostituir com o diploma no bolso. Só me restavam as duas opções que eram dadas às trans. Ou eu ia montar um salão – mas nunca tive aptidão – ou ia pra esquina”. Nessa época, Symmy trabalhava como prostituta de madrugada e era voluntária do Centro de Referência LGBT de Belém pela manhã, onde recebia denúncias de homofobias – homofobia, lesbofobia e transfobia – e encaminhava as vítimas para a polícia.

Acolhimento

Por achar que o acolhimento das mulheres e dos homens trans é a única maneira de permitir que se tornem médicos, professores ou tenham qualquer outra profissão, e assim ganhem espaço na sociedade, Symmy diz que uma das suas prioridades na Secretaria de Direitos Humanos é fazer com que os serviços públicos, principalmente escolas e hospitais, entendam as necessidades desse grupo.

Segundo ela, muitos trans não encontram acolhimento, e nesse contexto, a escola sai de cena. “É imenso o número de pessoas trans de 14, 15 anos, na rua, já se drogando, já se prostituindo, vivenciando toda essa mazela”, lamenta. A Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) estima que 90% das travestis e transexuais brasileiras estejam envolvidas com prostituição.

Symmy disse que é prioridade da sua coordenação lutar para que a sociedade brasileira trate essas pessoas de forma igualitária. “Falta esse olhar nos profissionais de todo o serviço público. Isso só muda com o convívio, por isso também é tão importante que as travestis frequentem a escola, para que possam conviver e aprender a se relacionar”. Symmy acredita que essa convivência pode fazer o preconceito diminuir e mudar a forma de tratamento de quem é trans. “Precisamos com urgência transformar as escolas em locais acolhedores. Hoje, quando uma aluna diz que não quer usar o banheiro junto com uma travesti, a escola não sabe como lidar, não sabe o que fazer e tem medo dos pais.”

Transexualidade

Outra pauta prioritária para pessoas trans e que poderia aumentar a expectativa de vida dessa população, estimada em 30 anos, é o acesso ao Processo Transexualizador, que já é um direito pelo Sistema Único de Saúde (SUS), mas não está capilarizado nos estados. O processo transexualizador é um conjunto de procedimentos que auxilia travestis e transexuais, como psicoterapia, tratamento hormonal e cirurgias de mudança de sexo para as mulheres transexuais interessadas. “Hoje, pela Portaria 2.803, uma travesti deveria poder chegar a um hospital público e fazer o tratamento. Mas o SUS está lutando para conseguir disseminar hospitais nos estados e municípios] que queiram se credenciar, e é difícil.”

Segundo Symmy, há poucos médicos preparados e interessados em trabalhar com complementação hormonal, etapa importante do processo. “Não é porque a gente conquistou a portaria que o processo está garantido. A dificuldade de acesso ainda é muito grande. Precisamos levar o acesso para todo o Brasil”. Ela sabe, por experiência própria, que isso pode impedir que as travestis façam o tratamento hormonal por conta própria, sem orientação médica. “Eu fiz isso e tive uma overdose, fui parar no hospital.”

Com informações da Ag. Brasil