Deus precisa de companhia

“A minha proposição inicial, que me atrevo a considerar indiscutível, é de que Deus criou o universo porque «se sentia» só. Em todo o tempo antes, isto é, desde que a eternidade começara, «tinha estado» só, mas, como não «se sentia» só, não necessitava inventar uma coisa tão complicada como é o universo.

Com o que Deus não contara é que, mesmo perante o espectáculo magnífico das nebulosas e dos buracos negros, o tal sentimento de solidão persistisse em atormentá-lo. Pensou, pensou, e ao cabo de muito pensar fez a mulher, «que não era à sua imagem e semelhança». Logo, tendo-a feito, viu que era bom. Mais tarde, quando compreendeu que só se curaria definitivamente do mal de estar só deitando-se com ela, verificou que era ainda melhor. Até aqui tudo muito próprio e natural, nem era preciso ser-se Deus para chegar a esta conclusão.

Passado algum tempo, e sem que seja possível saber se a previsão do acidente biológico já estava na mente divina, nasceu um menino, esse sim, «à imagem e semelhança de Deus». O menino cresceu, fez-se rapaz e homem. Ora, como a Deus não lhe passou pela cabeça a simples ideia de criar outra mulher para a dar ao jovem, o sentimento de solidão que havia apoquentado o pai não tardou a repetir-se no filho, e aí entrou o diabo.

Como era de esperar, o primeiro impulso de Deus foi acabar logo ali com a incestuosa espécie, mas deu-lhe de repente um cansaço, um fastio de ter de repetir a criação, porque de facto nem o universo lhe parecia já tão magnífico como antes. Dir-se-á que, sendo Deus, podia fazer quantos universos quisesse, mas isso equivale a desconhecer a natureza profunda de Deus: logicamente, fizera este porque era o melhor dos universos possíveis, não podia fazer outro porque forçosamente teria de ser menos bom que este.

Além disso, o que Deus agora menos desejava era ver-se outra vez só. Contentou-se portanto com expulsar as suas desonestas e mal-agradecidas criaturas, jurando a si mesmo que as não perderia de vista no futuro, nem à perversa descendência, no caso de a terem. E foi assim que começou tudo. Deus teve portanto duas razões para conservar a espécie humana: em primeiro lugar, para a castigar, como merecia, mas também, ó divina fragilidade, para que ela lhe fizesse companhia”.

Texto de José Saramago, Nobel de Literatura, que neste ano e neste mês de novembro, comemoramos o centenário do seu nascimento.

“O bálsamo do labor da cigarra”, crônica do amigo Donald Malschitzky

Com a anuência do amigo, escritor, poeta e confrade das letras, Donald Malschitzky, reproduzo aqui uma de suas crônicas, que publica em jornais de Joinville e de São Bento do Sul, falando de incompreensões, etc…. Sempre eloquente, Donald sempre nos passa toda a crueza da vida em linhas suaves…. Confiram abaixo:

Escrever tem dessas coisas. Mencionei a posição dúbia do papa para com o ecumenismo; leitora escreveu-me que se o papa não aprovava “esse tal de ecumenismo”, coisa boa não era! Obviamente, não tinha a menor noção de seu significado, que vem de “aldeia”, um lugar onde as pessoas convivem e se aceitam sem se acharem superiores às outras. Da outra, disse que o “workalcolic” tinha uma doença que deveria ser tratada. Antes de fazê-lo, pesquisei no são Google e em livros e indaguei especialista. A reação não foi das melhores!

Em “Fogo Pálido”, Vladimir Nabokov (para ajudar: autor de “Lolita”) escreveu: “La Fontaine errou: morta a mandíbula, a canção perdura”. Não foi La Fontaine o autor da fábula, foi Esopo, mas o francês a colocou num poema que todo mundo que um dia estudou a língua teve de aprender. Bilac inventou outra fábula, enaltecendo a canção, e Khalil Gibran chamou de limitado o pensamento que coloca o labor da formiga acima da música da cigarra. Nabokov foi perfeito: a mandíbula um dia para; a canção é perene. Não só a canção: a arte.

Quem montou o primeiro tanque de guerra? E quem compôs a Nona Sinfonia? Quantos sabem a resposta para a primeira pergunta? E para a segunda? Em uma religião, o que vem antes, o templo ou a palavra? Quando os bens acumulados se vão, o assobio não fica guardado e um dia se manifesta e faz carinho no coração? Se, da contemplação da beleza, aparente ou oculta, não nascessem quadros, esculturas, poemas, acordes, seríamos mais ou menos felizes?

O conceito de que fazer arte não é trabalhar tem várias origens, todas elas burras; quem faz arte, normalmente, tem outra visão das coisas, não gosta de caretice, não vê sentido em regras sem sentido e por aí vai, mas trabalha, e muito. Ou pintar a Capela Sistina foi um descanso para Michelangelo? E como podemos classificar o esforço de Beethoven, surdo, mandando cortar as pernas do piano para, pela vibração no solo, melhor identificar as notas? E o escritor que passa dez horas por dia escrevendo e mais um tempo pesquisando? Quantos anos de duro aprendizado precisa a bailarina e, depois, quantas horas de ensaio para minutos de aplausos? Cigarras, sim, que trabalham para que o suor seja mais agradável. E gostam do que fazem. Talvez esteja aí a razão do preconceito”.

Minha Crônica: “1461 dias”

Como diria o personagem Chicó (Selton Mello) em Auto da Compadecida, não sei, só sei que foi assim. Naquele dia eu andei pelas ruas, empoeiradas, asfaltadas, lajotadas, enfim, tomei a cidade para mim. Solitário, passeei por colégios eleitorais, encontrei amigos, discuti voto. Dever de cidadão feito, e até mais que isso, resolvi partir para a festa da vitória do candidato que escolhi em segundo turno. Diversão para o lobo solitário. Eis que Marina me liga, me chama para uma cerveja bem próximo ao Centro de Eventos Sítio Novo, em um posto de gasolina. Destino? Talvez. Estava há metros dali. Fui. Nos encontramos, ela e mais um monte de mulheres, grande festa, prévia do que viria depois.

Não demorou muito para que saíssemos dali para o Sítio Novo. Levei Marina comigo, e entramos conversando naquele lugar lotado de gente de vermelho, alegre, feliz pela vitória do futuro prefeito. Me senti feliz por estar ali, vivendo aquele fato histórico para minha cidade. Mal sabia que outro fato marcaria para sempre a minha vida. O teu olhar.

Anda para lá, para cá, abraça um, sorri com outro. Volto ao meio da turma de Marina. E encontro o teu olhar. Inesquecível. Fulminante. Certeiro. Luminoso. Paixão imediata. Sucumbi ao amor que estava em você. Meus olhos não largaram mais os teus. A cada movimento do teu corpo, dos teus cabelos compridos, mais me convencia que encontrara algo que procurei por uma vida inteira. O amor. Entre um gingado e outro das tuas belas curvas, o teu olhar esgueirado ao olhar para trás, me comovia.

Hoje já são 1461 dias daquele momento único. Porque viver é assim tão impreciso? E tão apaixonante, mesmo em tempos de borrascas, trovoadas e desgraças? Antes do encontro de nossos olhares, estivemos no mesmo lugar, na mesma mesa de Marina, e não te vi. Coisas desse mundo louco. E quem lê esta crônica há de pensar no depois desse momento, os abraços, o aconchego, o fazer amor… não, não, nada houve naquele dia.

Mas tudo aconteceu naquele dia. Porque ali marcou o nosso encontro – ou seria um reencontro após muitas vidas? – para sempre. A partir daquele dia, teu olhar não largou mais este homem ávido por um amor de verdade. Você, arisca, desconfiada, ainda atendeu meu telefonema na madrugada. E assim se fez.

Outro encontro, e um chamado de sogra abreviou momentos mais quentes. Que lamento! Troca de telefonemas, emails, até um dia dos mais tristes em minha vida, onde chorastes comigo a perda, o momento inicial de outras agruras. E você me ouviu. Ouviu o choro doído, a amargura, e ficou ali, do outro lado da linha, a me ouvir.

Você não precisava, não sabia, mal conhecia este jornalista escritor de coisas e histórias, e textos, e poesias e crônicas. Mas me deu teu tempo, e me falou coisas bonitas, acalmou meu coração. Mas a vida sempre apronta com a gente. E tudo se desfez logo à frente. Você para um lado, e para outro. Meses se passaram, mas pareciam anos para mim. Teu olhar, sempre ele, me faltava, a inanição da tua fala, tua palavra, tua presença, me faltavam e sofri.

Quando tudo parecia ser mais uma história passada, você reapareceu. Como no olhar, fulminante, você voltou e se atirou corajosa, tal qual o trapezista se larga no espaço vazio a espera dos outros braços que o acolham. Eu, escravo da tua luz, renasci como flores ao receber a chuva. De lá para cá superamos eu e você muitas dificuldades, maledicências, desconfianças, diferenças, tantas coisas! Mas você é o amor da minha vida, e já se passaram 1461 dias de amor, porque amar de verdade é assim.

É brigar, refazer, conversar, sentir, ouvir, ouvir, ouvir, desejar, enfrentar, superar, vencer, perder, viver… E contigo vivo minha Gi Rabello, feliz. Porque tua luz me ensina a perceber que a vida é muito mais. Porque eu sou um homem de sorte por ter você. Quero celebrar tuas vitórias até o último dia que o Criador me conceder, porque amo você, eternamente.

Hoje completam 1461 dias que teu olhar me arrebatou irremediavelmente. Que os dias se multipliquem para que possa te admirar e me apaixonar a cada momento dessa vida especial ao teu lado, minha eterna companheira. E como disse Chicó, não sei, só sei que foi assim, e você está aqui pertinho de mim.