Artigo: Como é a vida de um juiz que solta?

Como juiz criminal, sempre procurei decidir tendo como norte o filtro constitucional das leis penais e processuais penais com hermenêutica. Portanto, sem surpresas e pontos fora da curva, todos os atores jurídicos tinham certa previsibilidade de minhas decisões.

Em geral elas se afirmavam com a regra da liberdade prevalecendo sobre a exceção da prisão. Era conhecido mais como o juiz que soltava do que como aquele que mandava prender. E olha que não foram poucas as ordens prisionais e condenações, havendo casos de dezenas, até mais de uma centena de anos de condenação.

A partir, porém, do momento em que passei a atuar na execução penal, então sim ficou muito nítida a imagem que passaram a ter de mim, a do juiz que “manda soltar”.

Isso é natural, pois nesta função, além da fiscalização das condições do cárcere, a competência jurisdicional está basicamente nos termos de cumprimento da pena e na deliberação sobre sua progressividade, livramento e extinção. Ou seja, é corrente entre a massa carcerária que o juiz que executa a pena é aquele que manda soltar.

Para ilustrar, segue um fato vivido. Numa manhã dessas, saio de uma reunião no Comitê de Segurança (órgão existente na Comarca, intersetorial, que trata das questões da segurança), onde novamente não poupei o governo do estado pela falta de objetividade na aquisição de bloqueador de telefone celular para o Presídio e na falta de resposta aos pleitos da região, especialmente nos investimentos necessários para condições mínimas de vida digna para detentos (ambulatório médico, recursos humanos, reformas para acabar com superlotação, melhoria na casa de recepção e espera de familiares em visita etc).

No caminho para o Fórum, passo no médico para avaliar minha garganta. Uma tosse irritante incomoda. Nada grave diagnosticado, antes ainda de voltar para o trabalho paro no posto de gasolina. Abasteço, pago no caixa e retorno ao carro.

Já dada a ignição, um rapaz de seus 25 anos se aproxima e bate no vidro. Camisa de futebol, boné, tatuagens. Ao lado outro rapaz no mesmo estilo, mais jovem. Avalio a situação. Abro a janela e aceno a cabeça.

– Pois não?
– Bom dia, moro na rua, o senhor tem algum dinheiro para me ajudar? – o rapaz é objetivo.
– Não tenho, paguei com cartão, nem um tostão – e não tinha mesmo.
– Senhor, quando vai acabar minha pena? Estou assinando no Fórum – obviamente era um apenado e me reconheceu.
– Cumprindo pena e morando na rua? – resolvi aprofundar a conversa, simpaticamente.
– Mais ou menos na rua. Eles disseram que é 2016.
– Então continue assinando, não se envolva em nada mais e assim em 2016 sua pena termina – resolvi não perguntar o que seria o “mais ou menos” na rua.
– Claro doutor, não me envolvo mais em crime nenhum.
– Sei disso, é por isso que você está aí, livre, na rua.
– Isso mesmo doutor. Um bom dia então.
– Bom dia.

Dou a partida, em tempo de ver o rapaz se voltar para o amigo. – Ele é juiz – diz ao amigo, querendo deixar claro que me conhece.

– Eu sei, ele que me soltou! – responde o amigo, mostrando que também me conhece. Pois então, que bom ser conhecido como o juiz que solta.

* Artigo publicado no site Justificando, de autoria de João Marcos Buch é Juiz de Direito da Vara de Execuções Penais da Comarca de Joinville/SC