Fiscalização flagra escravidão na produção de roupas para surfistas e skatistas

fiscal-GRU1Trabalhadores em condições análogas às de escravos foram resgatados produzindo peças da Gangster Surf and Skate Wear, confecção paulistana que tem como público-alvo surfistas, skatistas e praticantes de outros esportes radicais. A libertação foi feita na última terça-feira (19), durante fiscalização em uma pequena oficina localizada no bairro São João, em Guarulhos (SP), onde trabalhavam dois bolivianos e um peruano. Os três foram resgatados. Toda a produção da oficina era destinada à Gangster, loja do bairro do Brás, região central da capital paulista.

Em nota enviada à Repórter Brasil, a empresa afirma sido surpreendida pelo episódio e lamentá-lo “profundamente”. Diz ainda ter adotado medidas para salvaguardar os direitos dos trabalhadores e iniciado “uma revisão dos procedimentos internos das contratações de fornecedores, visando alinhar a gestão às melhores práticas na formação e  monitoramento das relações de trabalho da cadeia produtiva”. (Veja a nota na íntegra abaixo).

Os três trabalhadores dormiam no próprio local, um sobrado de três dormitórios com precárias instalações elétricas e más condições de higiene e de segurança – o botijão de gás ficava a poucos metros de um dormitório improvisado no cômodo ao lado da cozinha. A operação, acompanhada pela Repórter Brasil, foi realizada sob a coordenação do Grupo Móvel de Combate ao Trabalho Escravo, vinculado ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Participaram também representantes do Ministério Público do Trabalho (MPT), Polícia Federal e Receita Federal.

Os imigrantes não tinham registro em carteira. Como ganhavam por produção, cumpriam jornada exaustiva. Segundo eles, em média começavam a costurar por volta das 7h30 e paravam em torno das 20hs – havia intervalos de uma hora para o almoço e meia hora para o chá. Aos sábados, trabalhavam até o meio-dia. Em um dos quartos dormia o dono da oficina, que, com a esposa e os dois filhos, estava em viagem à Bolívia no dia do flagrante. Ainda de acordo com os trabalhadores, no local haviam mais sete funcionários (todos bolivianos), que após uma fiscalização anterior do MPT tinham decidido ir embora.

Condições precárias
A má impressão começa logo ao entrar no local. No pátio da frente, em um espaço aberto coberto por um telhado de zinco, inúmeros objetos estão amontoados: televisão, microondas, bicicleta ergométrica, esteira eletrônica, ventilador, geladeira, engradado de cerveja – todos em mau estado – em meio a várias peças de roupa, brinquedos e caixotes de madeira espalhados pelo chão. Para completar a cena, batatas e cebolas apodrecidas jogadas no piso. Em outro canto do pátio da frente, um mini “depósito”, com pilhas de moletons recém-costurados.

No andar de baixo, no cômodo contíguo à cozinha, uma cortina serve como divisória para improvisar um dormitório para uma pessoa. Sueko Uski, auditora fiscal da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de São Paulo (SRTE/SP), chama a atenção para a proximidade entre o botijão de gás e o local em que um dos trabalhadores dormiam. Além disso, uma precária fiação cruza o cômodo de um lado a outro. Ainda no piso inferior do sobrado fica o quarto do dono da oficina, onde dorme com sua esposa e filhos. No andar de cima, são dois quartos: um com duas camas de solteiro, outro com três. Ao lado, encontra-se um grande salão com 17 máquinas de costura e inúmeras pilhas de peças já costuradas ou a costurar. No teto, um emaranhado de fios e lâmpadas fluorescentes pendurados.

A Gangster pagava à oficina aproximadamente entre R$ 0,70 e R$ 3 por peça, dependendo do nível de dificuldade de sua produção. Cada costureiro ficava com apenas um terço do valor; outro terço era reservado para as despesas da casa, como limpeza e alimentação, enquanto o restante ficava com o oficinista. Por mês, cada imigrante ganhava em média R$ 800, isso por conta da realização de várias horas-extras. De acordo com cálculos do Grupo Móvel de Combate ao Trabalho Escravo, se fossem respeitadas as 44 horas semanais definidas pela legislação trabalhista, o ganho mensal seria de apenas R$ 560.

Na ausência do dono da confecção, a encarregada era sua cunhada, que também trabalhava como costureira. Esteve no Brasil pela primeira vez entre 2008 e 2010 e, no ano passado, retornou. Está no país apenas para juntar dinheiro e voltar para a Bolívia, onde cursa Enfermagem. Segundo ela, o proprietário da oficina está há cinco anos no Brasil e herdou de uma tia parte do maquinário.

O outro trabalhador boliviano afirmou estar há quatro meses no país, para onde decidiu vir de La Paz após ser convencido por uma prima que vive aqui. Segundo ele, há dois meses, na praça Kantuta – tradicional local de reunião de bolivianos na região central de São Paulo – foi chamado a trabalhar pelo próprio dono da confecção de Guarulhos. Já o costureiro peruano soube do local quando jogava futebol em um campo nas proximidades.

Na próxima semana, os proprietários da Gangster devem assinar um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) em que se comprometem a elaborar um código de conduta a ser seguido por todos os fornecedores e a realizar o permanente monitoramento de sua cadeia produtiva. Além disso, por causa do flagrante devem pagar um aporte social de R$ 300 mil. As indenizações trabalhistas aos imigrantes libertados já foram pagas e o MTE já emitiu suas carteiras de trabalho e guias de seguro-desemprego.

Outras fiscalizações
No próprio dia 19, 28 costureiros bolivianos submetidos à escravidão foram resgatados em uma oficina na Zona Leste de São Paulo (SP) que produzia peças para a GEP, empresa formada pelas marcas Emme, Cori e Luigi Bertolli e que pertence ao grupo que representa a grife internacional GAP no Brasil.

Na mesma semana foi realizada a São Paulo Fashion Week, tradicional desfile de moda da capital paulita. Uma semana depois, na terça-feira (26), o deputado estadual Carlos Bezerra Jr. (PSDB) protocolou na Assembleia Legislativa de São Paulo pedido de convocação do representante legal da GEP para dar explicações sobre o caso à Comissão Estadual de Direitos Humanos. O requerimento deve ser votado no dia 2 de abril.

Ainda no dia 19, a fiscalização conjunta do MTE e do MPT flagrou 13 trabalhadores bolivianos em condições análogas às de escravo em mais três confecções, duas localizadas na Zona Leste de São Paulo e uma na Zona Norte. Em dois dos casos – que somavam, no total, oito costureiros –, a produção era encomendada pela Silobay, empresa intermediária da GEP. No momento da fiscalização em tais oficinas, porém, não havia mercadorias da marca. As negociações para que tal intermediária pague as indenizações aos imigrantes e assine um TAC ainda estão em curso. Situação semelhante a de uma empresa atacadista do Brás, que comprava a produção da terceira confecção, onde foram encontrados cinco costureiros.

Leia a seguir a nota de esclarecimento da Gangster:

“A Gangster, por meio de sua administração, informa que foi surpreendida e lamenta profundamente o ocorrido, tendo adotado de imediato todas as medidas exigidas pelas autoridades públicas envolvidas na operação, para salvaguardar todos os direitos dos três trabalhadores encontrados em situação irregular junto a uma facção que nos industrializa por encomenda, bem assim, seu ambiente de trabalho.

Por essa razão, concomitante e independentemente das tratativas com o MPT para eventual ajustamento de conduta ainda em fase de discussão, a empresa já iniciou uma revisão de seus procedimentos internos das contratações de fornecedores, visando alinhar a gestão às melhores práticas na formação e monitoramento das relações de trabalho da cadeia produtiva.”

Por: Rede Brasil Atual

Ameaçado, trabalhador foge e ajuda a libertar mais 12 colegas

Uma denúncia intermediada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) levou à libertação de 12 trabalhadores em condições análogas à de escravo, numa fazenda de criação de gado bovino, na zona rural do município de Castanheira (MT), a 800 km da capital Cuiabá (MT). Realizada entre os dias 24 de maio e 1º de junho, a operação constatou condições degradantes de trabalho e ofensa ao princípios fundamentais da dignidade humana.

Contratados para fazer o roçado e abrir a pastagem de pecuária extensiva e para aplicar agrotóxicos, os empregados estavam alojados de modo extremamente precário, em barracos de lona armados no meio do mato. O local não dispunha de quaisquer instalações sanitárias, e as vítimas eram obrigadas a se deslocar ao matagal, sem condições nenhumas de higiene.

Na fazenda, de 11mil hectares e com pelo menos 8 mil cabeças de gado, os trabalhadores não tinham carteira assinada. Eles também não dispunham de vestimentas ou de equipamentos de proteção individual (EPIs) adequados para tais atividades. Tampouco haviam sido treinados para realizar as tarefas exigidas. A equipe de fiscalização que realizou o resgate teve membros da Superintendência Regional do Trabalho e Emorego do Mato Grosso (SRTE/MT), representante do Ministério Público do Trabalho (MPT) e policiais estaduais do Grupo de Operações Especiais (GOE).

Segundo o coordenador da operação, o auditor-fiscal do trabalho Gerson Delgado, entre os 12 libertados havia uma mulher adulta que era responsável por preparar as refeições e que, embora tivesse um alojamento próprio, “dividia, sem nenhuma privacidade, o mesmo espaço com os outros empregados”. Além disso, a água que os trabalhadores bebiam e era usada para cozinhar os alimentos fornecidos pelo fazendeiro vinha diretamente de um córrego, sem passar por tratamento algum antes de ser ingerida pelo grupo.

Somente dois trabalhadores – bem como o “gato” que, além de recrutamento, também era o responsável por supervisioná-los  – estavam há mais de seis meses na fazenda (desde novembro de 2011). Oito deles trabalhavam há apenas 10 dias no local. E os outros, desde janeiro de 2012. Uma arma de fogo e um caderno com informações sobre cada empregado, ambos pertencentes ao “gato”, foram apreendidos.

Ameaça, fuga e denúncia
Um disparo da espingarda confiscada na fazenda deu início à investigação da SRTE/MT, segundo o coordenador Gerson. “Um dia, o ‘gato’ reclamou do serviço de um dos trabalhadores, porque não estava a contento, por conta de um dia chuvoso e ruim. Esse cara pediu para sair da fazenda, e aí foi ameaçado pelo ‘gato’, que usou da arma para dar um tiro e intimidar o empregado”, explica o coordenador da operação à Reporter Brasil.

Assustado, o trabalhador fugiu do local e denunciou a situação. “A vítima saiu e procurou a CPT, que repassou a denúncia à Superintendência”, diz o auditor-fiscal. Se a pessoa que foi ameaçada não tomasse essa atitude, avalia Gerson, certamente a equipe de resgate teria demorado mais para aparecer e descobrir esse caso de trabalho análogo à escravidão na propriedade em Castanheira (MT). Isso explica, em parte, porque alguns empregados estavam há apenas 10 dias no local quando foram libertados.

Mulher tinha de dividir barraco com homens

Processos e encaminhamentos
No total, o fazendeiro e seu filho, encarregado pela administração da fazenda, tiveram que arcar com indenizações na soma de R$ 70 mil. Tanto os dois quanto o “gato” já assinaram o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) por danos morais individuais com o MPT. Até o final do próximo mês de julho, uma audiência pública com os autuados será marcada para selar também a indenização por danos morais coletivos.

Segundo o procurador do trabalho José Pedro dos Reis, que acompanhou a fiscalização, será proposto também aos proprietários um compromisso de adequar as condições na fazenda ao exigido pela legislação trabalhista brasileira.

Após a libertação, os trabalhadores receberam as quantias a que tinham direito e foram cadastrados no Projeto Qualificação-Ação Integrada, iniciativa conjunta do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), do MPT e da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), que tem por objetivo a reinserção e requalificação de trabalhadores egressos de situação análoga à de escravo. O nome dos envolvidos não foi divulgado a pedido do coordenador da operação.

Por: Repórter Brasil

Trabalho escravo: CPI finalmente é instalada na Câmara dos Deputados

Após quase um ano de sua propositura pelo deputado Cláudio Puty (PT-PA), a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Trabalho Escravo foi instalada na tarde desta quarta-feira (28) na Câmara dos Deputados. O presidente da CPI é o próprio Puty e o relator será Walter Feldman (PSDB-SP).

A CPI tem como base a lista do Ministério do Trabalho que inclui 294 empregadores, entre pessoas físicas e jurídicas, acusados de explorar a força de trabalho de forma análoga ao escravo. Ela funcionará por 120, sendo prorrogável até o final da legislatura.

Os ruralistas também estão em peso na comissão e assumiram as suas três vice-presidências através de Júnior Coimbra (PMDB-TO), Bernardo Santana de Vasconcellos (PR-MG) e Homero Pereira (PSD-MT). Pereira afirmou que este tipo de trabalho é inaceitável, mas ressaltou que a CPI não pode enfocar a investigação sem denúncias consistentes: “Por isso temos que analisar com critérios”.

De acordo com Puty, a CPI será polarizada entre os que querem melhorias das condições de trabalho e aqueles que querem combater a fiscalização. “Da parte dos ruralistas, o discurso é que há fiscalização excessiva. Eles pegam casos particulares para generalizar”, explicou.

Cláudio Puty afirmou que a CPI servirá para colocar a questão do trabalho escravo em pauta num plano mais amplo de avaliação das condições de trabalho no Brasil, no campo e na cidade. Mas, ele também apontou que a comissão indicará qual é a correlação de forças na Casa para a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição do Trabalho Escravo (PEC 438).

O Palácio do Planalto, através do ministro da Secretaria Geral da Presidência, Gilberto Carvalho, e o presidente da Câmara, Marco Maia (PT-RS), já assumiram publicamente o compromisso de votar a PEC 438 até 13 maio deste ano, dia em que a abolição da escravidão no Brasil completa 124 anos.

Fonte: Carta Maior

 

Escravidão: escola de juízes terá aulas sobre o tema

A Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho (Enamat), do Tribunal Superior do Trabalho (TST), estabeleceu na tarde desta terça-feira, 13 de março, parceria com a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República para o ensino de combate à escravidão para juízes. O diretor da Enamat, ministro Aloysio Corrêa da Veiga, e a ministra de Direitos Humanos, Maria do Rosário, assinaram acordo que prevê medidas conjuntas para fortalecer o ensino sobre o tema em cursos de formação e aperfeiçoamento de magistrados do trabalho.

“É preciso integração com toda a sociedade, com todo o Estado de Direito. O combate à escravidão deve ser prioritário. A função do estado é garantir que as pessoas sejam felizes”, defendeu Aloysio. “Não podemos considerar o Brasil uma nação democrática enquanto houver trabalho escravo”, defendeu Maria do Rosário.

O lançamento da parceria foi celebrado durante aula do 11º curso de formação inicial da Enamat. “Cada um dos participantes [da Justiça] deve conhecer a realidade dos demais integrantes e conhecer mais sobre o tema”, defendeu Vera Lúcia Ribeiro de Albuquerque, secretária de Inspeção do Ministério do Trabalho e Emprego, ao apresentar um panorama das ações de combate à escravidão em curso no país. “A escravatura atual é muito mais perversa que a antiga. Antes, o trabalhador era um bem. Hoje ele é praticamente descartável”, completou.

Enfrentamento e erradicação
O crime de reduzir alguém à condição análoga a de escravo, previsto no artigo 149 do Código Penal http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848.htm, foi explicado em detalhes por José Guerra, secretário-executivo da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae). “Precisamos tratar o tema entre os juízes, entre os procuradores, entre os auditores, chamar atenção para a questão”, defendeu. Jonas Camargo, procurador do Ministério Público do Trabalho, falou sobre os mecanismos para o combate à escravidão, como o cadastro de empregadores flagrados explorando escravos, a Lista Suja.  “Precisamos observar o trabalho escravo contemporâneo, entendê-lo, enfrentá-lo e erradicá-lo”, afirmou.

“Ao condenar é preciso observar o tripé punir, ressarcir e prevenir”, defendeu o ministro do TST Walmir Oliveira da Costa. “É preciso procurar equilibrar as relações sociais”, completou.

Nesta quarta-feira, 14 de março, representantes da Conatrae visitam o Congresso Nacional para defender a importância da aprovação da Proposta de Emenda Constitucional 438, a PEC do Trabalho Escravo, medida que prevê a expropriação de propriedades em que for flagrado trabalho escravo para fins de reforma agrária. A Repórter Brasil faz parte da Conatrae.

Do Repórter Brasil

 

Índios da Bolívia: jornalista mostra a luta contra a escravidão

Foi embaixo de uma árvore alta, de tronco grosso, que a família Flores se instalou. Primeiro, limpou o mato, deixando tudo plano para distribuir os poucos pertences trazidos. Nem precisou de todo o espaço. O único teto era uma lona azul apoiada por seis estacas de madeira que não protegia nem dez metros quadrados.

Esta era a casa de Juan Flores, sua esposa, duas filhas e quatro netos. Flores, aos 55 anos, havia descoberto a liberdade pouco tempo antes: nasceu escravo e é uma das vítimas do sistema escravagista que se opera na região do Chaco, no departamento de Santa Cruz, na Bolívia. Em 2009, a jornalista Juliana Dal Piva foi à região para documentar a história de pessoas como Juan e da luta dos índios guaranis contra o trabalho escravo.

Dessa pesquisa, resultou o livro Em luta pela terra sem mal, que será lançado pela Editora Multifoco no dia 2 de março. O problema da escravidão na Bolívia se concentra em três departamentos: Tarija, Chuquisaca e Santa Cruz. Não há consenso sobre o número exato de pessoas nessa situação, mas diversos estudos apontam uma média que se aproxima de oito mil. Três mil estão na região da província Cordillera, em um local conhecido como Alto Parapeti, e foi justamente esta a região visitada pela jornalista durante a investigação. Como a situação chegou a este ponto e a maneira como está sendo revertida são os pontos centrais da obra.

Saiba mais sobre o projeto

Legalmente, a escravidão foi abolida na Bolívia em 1831, após a independência e a proclamação da República. Mas o tempo transcorrido entre a abolição e os dias atuais apenas contribuiu para o surgimento de um novo sistema escravagista, que aplicou elementos das relações feudais de servidão aos antigos escravos. E é justamente o modo como o país se desenvolveu nos últimos 120 anos o que ajuda a explicar essa anomalia. Até 1892, o governo boliviano não tinha controle sobre todo o seu território, especialmente na região leste do país e há tempos disputava seu controle com o povo indígena chiriguano. Em março daquele ano, a execução de seu último grande líder, conhecido como Apiaguaiki Tüpa, na chamada batalha Kuruyuki, deu fim à guerra.

Depois dos conflitos, restavam no Chaco menos de dez mil índios dos 200 mil que viveram ali. Dos que ficaram, 8.400 viviam em comunidades dentro das missões franciscanas. Para muitos dos chiriguanos que continuaram nas comunidades originais, não houve outra escolha a não ser submeter-se ao trabalho escravo dentro das propriedades ocupadas, especialmente na criação de gado. Com o passar do tempo, colonos foram se estabelecendo e a perda dos territórios foi completada e legalizada a partir da Reforma Agrária de 1953, especialmente durante a ditadura militar do general Hugo Banzer (1971-1978). Durante o Século 20, o povo perdeu a permissão para se vestir da maneira tradicional, viver em comunidade e realizar rituais religiosos. Abandonou sua história e até o nome. Perdeu o direito à identidade étnica e passou a ser chamado de “camba”.

As novas gerações foram aos poucos lutando contra as condições que lhes eram impostas. Reconhecer-se como indígena novamente não foi uma tarefa fácil, menos ainda como chiriguano. Foi por meio do idioma guarani que a identificação reapareceu – e rapidamente –, porque a língua continuou sendo utilizada no cotidiano desse povo, inclusive para proteção frente aos patrões. Assim justificaram os líderes da Assembleia do Povo Guarani a escolha do nome da organização que os reúne na Bolívia. A situação só começou a ser denunciada publicamente nos anos 1990, mas as medidas só tiveram alguma efetividade quando a denúncia chegou à Corte Interamericana de Direitos Humanos, em São José da Costa Rica, em 2004.

A ascensão de Evo Morales ao poder em 2006 deu um novo impulso à luta e, no ano seguinte, a partir do decreto supremo número 29292, permitiu-se a expropriação das propriedades sem indenização quando fossem constatadas as chamadas “relaciones servidumbrales”. O decreto foi resultado de uma parceria entre o Vice-Ministério de Terras e a Assembleia do Povo Guarani. A interpretação que se fez foi a de que o direito do proprietário é garantido com o cumprimento da Função Econômico-­Social (FES). Sendo a escravidão uma clara violação dos direitos humanos e um descumprimento da FES, a propriedades das terras poderiam, a partir de então, ser revertidas sem indenização. No Brasil, existe uma proposta de emenda constitucional semelhante esperando por votação desde 2001. Passou no Senado, mas está parada na Câmara desde 2004 e sem previsão de votação. A obra aborda ainda os conflitos recentes referentes à aprovação da Constituição Plurinacional e à audaciosa implementação da autonomia indígena.

Apesar deste quadro complexo e desafiador, as histórias de vida mostradas no livro revelam um profundo desejo dos guaranis pela paz. A paz numa terra sem escravidão, onde homens e natureza convivam de forma harmoniosa, sem fome nem tristeza, a “terra sem mal” da mitologia indígena, que dá inspiração ao título da obra. É esta lenda de Mãe Terra semelhante ao paraíso, em contraste absoluto com a realidade de violência e conflito, que também inspira os guaranis a lutar por condições mais justas de vida.

Do Observatório Social

Trabalho escravo: Supremo transforma senador em réu

Por sete votos a três, o Supremo Tribunal Federal (STF) aceitou a denúncia do Ministério Público Federal e transformou em réu por trabalho escravo o senador João Ribeiro (PR-TO). Ele é acusado, desde 2004, de manter 35 trabalhadores em condições análogas à escravidão em uma fazenda de sua propriedade no interior do Pará. Entre eles, havia duas mulheres e um menor de 18 anos.

Votaram contra o recebimento da denúncia os ministros Gilmar Mendes, Dias Toffoli e Marco Aurélio Mello. Gilmar apresentou voto rebatendo a acusação de trabalho escravo e divergindo da relatora do caso, a ex-ministra Ellen Gracie.  Segundo ele, a precariedade das condições às quais os trabalhadores rurais estavam submetidos é comum à maioria dos brasileiros e, por isso, não deveria ser criminalizada.

“A inexistência de refeitórios, chuveiros, banheiros, pisos em cimento, rede de saneamento, coleta de lixo é deficiência estrutural básica que assola de forma vergonhosa grande parte da população brasileira, mas o exercício de atividades sob essas condições que refletem padrões deploráveis e abaixo da linha da pobreza não pode ser considerado ilícito penal, sob pena de estarmos criminalizando a nossa própria deficiência”, disse o ministro.

O julgamento do caso foi interrompido a pedido de Gilmar Mendes em outubro de 2010, quando Ellen Gracie apresentou seu voto a favor do recebimento da denúncia. O ministro pediu mais tempo para analisar os autos. O processo ficou um ano e dois meses parado no gabinete de Gilmar. Para ele, não houve coação, ameaça ou imposição de jornada excessiva. “Todos podiam exercer o direito de ir e vir”, disse o ministro.

Servidão por dívidaNão foi essa, porém, a opinião da maioria de seus colegas nem da ex-ministra Ellen Gracie. Na avaliação da relatora, as provas reunidas na fase preliminar de investigação (inquérito) comprometem o senador ao apontar para um quadro de condições degradantes, jornada exaustiva, restrição de locomoção, servidão por dívida e falta de cumprimento de promessas salariais e obrigações trabalhistas.

Um cenário que, segundo ela, pode ficar ainda mais claro com a continuidade das apurações por meio da ação penal. A ex-ministra apresentou seu relatório apenas quatro dias após João Ribeiro ter renovado seu mandato no Senado por mais oito anos, graças aos 375 mil votos recebidos. A investigação chegou ao Supremo em 22 de junho de 2004. Ou seja, há sete anos e oito meses. Outros dois parlamentares também respondem por trabalho escravo no Supremo: os deputados Beto Mansur (PP-SP) e João Lyra (PTB-AL).

Multa trabalhista
Em dezembro de 2010, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) confirmou o entendimento de que houve trabalho escravo, mantendo a multa de R$ 76 mil imposta a João Ribeiro em instância inferior. Em pronunciamento feito no Senado em 2005, ele reconheceu não ter cumprido obrigações trabalhistas, mas afirmou que ser acusado de trabalho escravo era “muito forte”.

Na defesa entregue ao STF, João Ribeiro alega que o processo não poderia avançar no STF enquanto não fosse julgado o recurso apresentado por ele contra a inspeção feita pelo Grupo Móvel de Combate ao Trabalho Escravo em sua propriedade. Ele nega a acusação e diz que não pode ser responsabilizado por eventuais problemas trabalhistas ocorridos em sua fazenda.
Rancho sobre brejo
Em fevereiro de 2004, integrantes do Grupo Móvel resgataram 35 trabalhadores da Fazenda Ouro Verde, de 1,7 mil hectares. A propriedade do senador está localizada no município de Piçarra, no Sudeste do Pará, na divisa com o Tocantins, a 555 km de Belém. Formada por representantes do Ministério do Trabalho, do Ministério Público do Trabalho e da Polícia Federal, a equipe aplicou 25 autos de infração. As rescisões contratuais custaram na época R$ 64 mil a João Ribeiro.

Os alojamentos eram ranchos improvisados, sem paredes e de chão batido, feitos por folhas de palmeiras e sustentados por arbustos fincados no solo. Um dos ranchos, segundo a denúncia, havia sido erguido sobre um brejo, cujas poças provocavam umidade excessiva e cheiro insuportável. Não existia banheiro. Os trabalhadores tinham de fazer suas necessidades fisiológicas ao relento.

Água insalubre e jornada exaustiva
Também não havia cama ou colchão. Cada um tinha de levar de casa a própria rede para repousar. Tampouco havia cozinha, de acordo com os fiscais. Para almoçar ou jantar, os trabalhadores tinham de se sentar sobre pedras e restos de árvores ou sobre o próprio chão. A refeição era composta basicamente por arroz, feijão e, eventualmente, carne, sem verdura, conforme o relato da fiscalização.

A água consumida era insalubre e vinha de três fontes – um brejo lamacento, uma cacimba rústica e uma represa. A mesma fonte de água era usada pelos trabalhadores para matar a sede, lavar suas roupas e louças, tomar banho e escovar os dentes, diz o relatório.
As jornadas de trabalho eram consideradas exaustivas. Estendiam-se por até 12 horas diárias de segunda a sábado. No domingo, seguiam por seis horas, sem qualquer observância de folga semanal.

De acordo com os auditores, os trabalhadores podiam aparentemente exercer o direito de ir e vir. Mas, segundo os fiscais, esse direito era desrespeitado de forma disfarçada, por meio da retenção de salários. Ainda de acordo com a denúncia, os trabalhadores eram contratados de maneira informal.

Do Brasil de Fato

Adolescentes escravizados exerciam atividades de risco no Pará

Quatro adolescentes foram encontrados entre os 52 trabalhadores resgatados de situação análoga à escravidão em fiscalização realizada na zona rural do município de Tailândia (PA), no final de janeiro, de acordo com o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Dois deles, de 13 e 14 anos, exerciam atividade de risco manuseando machados na extração e beneficiamento de madeira, trabalho que está entre as piores formas de exploração infantil, conforme a Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho e a legislação brasileira.

Outro, de 16 anos, trabalhava com uma foice para abrir caminho para a passagem das toras. E uma garota de 15 anos trabalhava como cozinheira em uma das frentes de trabalho. Ronaldo de Araújo Costa, proprietário da fazenda em que o flagrante aconteceu, nega que tenha explorado trabalho escravo e infantil, diz que os adolescentes não trabalhavam e que foram “oportunistas” ao se depararem com a fiscalização.

“O trabalho que eles realizavam era de ‘lapidador’, eles lapidavam o tronco até deixá-lo no formato de mourões para cercas. Dois dos adolescentes utilizavam machados e um, uma foice. Eles estavam trabalhando nas frentes, não há dúvidas quanto a isso”, diz a auditora fiscal Inês Almeida, do MTE. Na ação, o Grupo Especial de Fiscalização Móvel formado por agentes de diferentes órgãos, incluindo da Polícia Rodoviária Federal, apreendeu 11 armas, que, segundo os trabalhadores e os proprietários, eram utilizadas para caça. As atividades relacionadas a produção florestal são consideradas de risco 3 a 4, em uma escala de 1 a 4, conforme a Norma Regulamentadora Nº 4, do Ministério do Trabalho e Emprego

Entre os resgatados, havia uma mulher grávida, isolada assim como os demais dentro da mata. “Os trabalhadores viviam em barracos de lona sem nenhuma infraestrutura. Havia famílias e crianças. A água que eles consumiam era de igarapés, alguns com água parada. Era uma água suja, escura e a única que eles tinham para consumir. As pessoas tomavam banhos com tigelas. Todos viviam em uma condição muito limitada”, conta a auditora.

Ronaldo nega que a água consumida pelo grupo era suja. “São águas de igarapés que nascem na mata. A minha família chama de água mineral, todos nós bebemos essa água. Acho até que melhor do que a de outras fontes de água mineral do estado”, afirma o fazendeiro.

Responsabilidade
A extração de madeira acontecia em sete frentes localizadas na propriedade conhecida como Fazenda São Gabriel, um conjunto de três fazendas administradas por Hortêncio Pinhoto Costa, pai de Ronaldo, o proprietário. Os trabalhadores resgatados viviam em barracos de lona, alguns distantes a mais de 10 km dentro da mata. Os mourões fabricados eram levados até a sede e vendidos pelos proprietários, que ficavam com 30% do valor e repassavam 70% aos responsáveis por cada frente, de acordo com Ronaldo. Ele defende que, por ter arrendado a exploração, não tem responsabilidade pelas condições encontradas.

“Ele tem, sim, responsabilidade. Os trabalhadores estavam na propriedade dele, recebiam ordens deles sobre onde cortar e até a venda era coordenada pela família, que não fornecia nem transporte e nem alimentação. Os trabalhadores compravam de uma cantina da fazenda, onde havia também fumo e ferramentas de trabalho. Muitos ficavam devendo, o que caracteriza servidão por dívida”, explica a auditora Inês.

Além de submissão a trabalhos forçados ou a jornadas exaustivas, o trabalho escravo contemporâneo pode, de acordo com o artigo 149 do Código Penal brasileiro, ser caracterizado pela submissão a condições degradantes, restrição da locomoção dos trabalhadores ou a servidão por dívida. A pena, que vai de dois a oito anos de prisão em caso de condenação, deve ser aumentada pela metade se o crime for cometido contra crianças ou adolescentes.

Foram lavrados 24 atos de infração pela fiscalização em função de irregularidades encontradas.

Vulnerabilidade social
Ronaldo, o dono da fazenda, diz que falar em trabalho escravo no local é uma alegação “grotesca” e ressalta a pobreza da região ao ser questionado sobre as condições em que os empregados foram encontrados. “Os trabalhadores estavam recebendo. E agora? Antes, moravam em barracos, poderia até não ter um banheiro de alvenaria, mas eles tinham algo. Agora não vão ter onde morar. E nem o que comer”, ressalta o fazendeiro, que vive com a família em um dos condomínios de luxo mais caros da capital Belém (PA).

Os resgatados receberam R$ 168,9 mil em verbas rescisórias. “Muitos dos que estavam lá eram visitantes que acabaram se aproveitando. São oportunistas como os garotos, que estavam só visitando ou vivendo com a família e não trabalhavam. Em três meses, quando o dinheiro acabar, estarão todos desempregados e em condições piores ainda”, ataca o fazendeiro. Justamente para evitar que a situação de vulnerabilidade social possa acarretar em reincidência de trabalho escravo, as autoridades têm discutido programas de inserção de libertados e também medidas para minimizar a desigualdade em regiões onde o problema é crônico.

Entre as medidas que podem resultar em um avanço significativo neste sentido está a Proposta de Emenda Constitucional 438, a PEC do Trabalho Escravo, que prevê que as terras em que for flagrado trabalho escravo sejam expropriadas e destinadas a reforma agrária. Por enquanto, os trabalhadores resgatados seguem vulneráveis, sujeitos a serem cooptados em esquemas de superexploração. “Eles saem de uma situação, mas ficam em outra”, admite Inês, que defende programas de treinamento e capacitação para ajudar os resgatados. “Eu perguntei para um dos meninos o que ele gostaria de fazer quando crescesse. Achei que ele iria falar em algum trabalho mais leve, melhor. Ele disse que quer trabalhar na roça da juquira”, completa a auditora, se referindo à atividade de desmate para abertura de pastos, onde é bastante comum o uso de mão de obra escrava.

Do Repórter Brasil

Trabalho escravo ainda faz 20 mil vítimas no país

O Brasil ainda tem cerca de 20 mil trabalhadores que atuam em condição análoga à escravidão e os atuais métodos de combate à prática criminosa ainda não são suficientes para zerar a conta. Quem admite a situação é o Ministério Público do Trabalho (MPT) que lançou nesta sexta-feira (27) uma campanha nacional para sensibilizar a sociedade desse problema que persiste mais de um século depois do fim da escravidão no país. A campanha busca atingir empresários, sociedade e trabalhadores por meio de propagandas de TV, rádio e uma cartilha explicativa.

A ideia é mostrar que o trabalho escravo não se configura apenas pela situação em que o trabalhador está preso em alguma propriedade no interior, sem comunicação. “A legislação penal brasileira mudou em 2003 e incluiu condições degradantes de trabalho e jornadas exaustivas como situações de trabalho escravo. O trabalho escravo não é só o que tem cerceio de liberdade, pode ser psicológico, moral”, explica Débora Tito Farias, coordenadora nacional de erradicação do trabalho escravo do MPT.

Essa mudança na percepção está levando os órgãos fiscalizadores a encontrar novas situações de trabalho degradante também no meio urbano, como em confecções e na construção civil. A campanha pretende ajudar a sociedade a identificar e denunciar essas práticas. “A pressão social hoje é um fator muito importante em qualquer tipo de campanha. É importante que a sociedade perceba que a comida, o vestido pode ter um componente de trabalho escravo”, afirma o procurador-geral do Trabalho, Otávio Lopes.

Segundo o procurador, a compra de produtos que respeitem a dignidade humana deve ser vista da mesma forma que já ocorre com produtos orgânicos e com a preservação da natureza. Atualmente, uma lista do Ministério do Trabalho detalha os empregadores que submeteram trabalhadores à condição análoga a de escravo. Mais conhecida como lista suja do trabalho, a publicação tem hoje 210 empregadores listados.

Lopes afirma que o principal problema para zerar o trabalho escravo no Brasil é a reincidência, uma vez que muitos trabalhadores resgatados e não qualificados acabam voltando para a situação que tinham antes. “Quando tiramos aquela pessoa da situação de trabalho e não damos uma alternativa de qualificação, não estamos ajudando, estamos enganando.”

De acordo com o MPT, as parcerias para qualificação do trabalhador estão sendo firmadas com administrações estaduais e locais, de acordo com a necessidade econômica de cada região.

SMABC