Era um belo dia de sol após alguns dias frios e chuvosos. Essas oportunidades nem eu, e tampouco Bastião, perdemos. Meu parceiro de caminhadas é inseparável. Ele não admite que eu saia pelas pequenas ruas europeias a saracotear sozinho. Amigo de verdade é assim. Não tem como dizer não. Nosso plano era ir à biblioteca, passar pelo jardim do amor e bebericar um abatanado, quem sabe com um generoso bolo? Quase deu certo.
Digo quase por ter faltado o sentar na mesinha da pastelaria e saborear o pretinho básico. Meu erro, se posso assim dizer-lhe amigo leitor, foi dar uma parada ao sol, e abandonar-me ao banco sonolento que piscava para mim, amigo leitor. Estava a verificar o movimento quando uma senhora veio em direção ao meu banco. Sim, meu, pois lá estava totalmente senhor dele, não só eu como Bastião. Mesmo assim ela se aproximou. Olhou a volta, conversou com um gato a rua e se foi.
Pois bem, estávamos a ouvir a algazarra dos miúdos das escolas a passar quando ela, a senhora, retornou agora com um pacote a mão. Estranhamente falava sozinha. Abriu então a sacola e tirou lá de dentro um pacote amarelo. Olhava para a cerca viva que ficava por detrás do meu banco e cochichava. A cerca viva agarrava-se a uma cerca morta, de ferro, que protegia um casarão antigo e abandonado. Começou a realizar uma alquimia que era uma música para os gatos. Comida, ração seca.
Bastião não se mexia, mas eu a observava, e aos gatos que foram se achegando e aconchegando a ela. Não resisti a essa interessante ação e joguei uma frase ao vento que, àquela hora ampliava seu poder: – Eles vão matar a fome. E a senhora Eufemia, era o nome dela, respondeu: – Oh sim, eu sempre trago, mas eles estão magrinhos, pelo feio. As outras trazem comida barata, não ajuda a ficarem bonitos. Aí seguiu-se um longo relato sobre um revezamento de gente que alimenta aqueles gatos.
Agucei os ouvidos a escutar Eufemia. Fazia isso há anos, misturava a comida em uma sacola que escondia em meio a cerca viva. As outras voluntarias vinham, cada uma a seu dia, e revezavam-se em dar alimento aos gatinhos. – A senhora tem algum em sua casa, perguntei. Com certa amargura disse-me que sim, teve dois. Teve? – Sim, eles morreram. – Peço desculpas, que pena. Um deles era cinza, com riscas brancas, eu dei-lhe o nome de Riscadinho, contou-me a benfeitora. Riscadinho, era mesmo.
A história de amor entre ela e Riscadinho era comovente. O gato parecia um bebê, que abraçava e a beijava, gordo e peludo. Mas ficou doente dos rins, definhou, e se despediu dela um dia antes de morrer. Notei a tristeza úmida em seus olhos. Ainda bem que o sol ali estava a secar tristezas. Não podia deixar eufemia deprimida. Lasquei: – Tens outros gatos agora? Para a surpresa do vivente que lhes conta a história, ela diz: – Não, agora tenho uma cachorrinha, a Milú! Um sorriso se abriu.
A sua filha a havia presenteado com a buldogue francês para que a mãe se obrigasse a sair de casa. Eufemia, portanto, saia agora com Milu todos os dias. Pelo visto o calor da alegria voltou, e ela agora mantem o riscadinho somente nas boas memorias. Riscadinho se foi, Milu chegou e faz-lhe companhia. Nos despedimos, lá se foi Eufemia. Quanto a mim fiquei sem o café com bolo, sem o calor do sol, mas com o coração aquecido pela bela história de amor. Eufemia, os gatos, Milu e Riscadinho.
- Por Salvador Neto, Portugal, em 30 de abril de 2024