Mídia, Demóstenes e Cachoeira – A nova temporada de caça*

Começa a se aquecer mais uma temporada de notícias no departamento em que a imprensa brasileira parece mais vivaz: o dos escândalos. Nos jornais de sexta-feira (20/4), as manchetes já nascem com o propósito de desacreditar os personagens que assumem o papel do “bem”. Nas páginas internas, estendem-se os relatos sobre detalhes do esquema revelado, desta vez centralizado por um representante do negócio das máquinas viciadas de apostas.

O primeiro olhar dá ao leitor a sensação de que, desta vez, os jornais estão dispostos a destrinchar o enredo e expor ao julgamento informal e institucional os culpados e seus crimes.

No Estado de S. Paulo, a manchete informa que a Comissão Parlamentar de Inquérito que vai investigar as ligações de políticos e empresas com o contraventor Carlos Cachoeira foi criada, mas a bancada governista ainda não havia definido quem seria o relator.

Sabe o leitor que da disposição do relator sai a peça mais ou menos condenatória ao final da CPI. O jornal insinua que o cuidado na escolha desse personagem se deve a uma preocupação com a seletividade dos dados que serão oficialmente incluídos no documento final. Então, na abertura do processo o jornal já planta a hipótese de que, seja qual for o resultado da investigação, haverá suspeitas sobre os investigadores.

Como funciona

O Globotambém noticia a abertura da CPI, mas avança em novas denúncias envolvendo o governador de Goiás, Marconi Perillo, em relações mais íntimas com Cachoeira, tendo contratado para seu governo uma cunhada do contraventor.

Também estende a malha de corrupção até a capital de Minas Gerais, afirmando que o prefeito de Belo Horizonte, Marcio Lacerda, contratou a empresa Delta – apontada como beneficiária de licitações fraudadas com o objetivo de lavar dinheiro da corrupção – para uma obra orçada em R$ 170 milhões, ainda antes de ser oficializado o consórcio a ser contratado.

Nesta fase do escândalo, a tática da imprensa parece ser disparar na direção de todas as sombras. AFolha de S.Paulo, porém, avançou uns passos na estratégia de noticiar a iniciativa do Congresso de investigar as acusações, mas ao mesmo tempo criar no público a convicção de que o resultado ficará aquém das expectativas.

A tática consiste em observar, na manchete, que entre os 32 membros da Comissão Parlamentar de Inquérito indicados por seus respectivos partidos, nada menos do que 17 têm pendências com a Justiça. A informação é relevante e cria realmente uma dúvida fundamentada sobre as verdadeiras intenções dos criadores da CPI.

O jornal paulista cita, entre esses personagens de antigos escândalos de corrupção, os senadores Fernando Collor, que sofreu processo de impeachment quando presidente da República, Romero Jucá, alvo de processo criminal, e Cássio Cunha Lima, condenado por crime eleitoral e que só escapou da inelegibilidade pela nova Lei da Ficha Limpa quando o Supremo Tribunal Federal adiou a aplicação da nova norma.

Folha de S.Paulo também apresenta, em suas páginas internas, um infográfico de página inteira, fartamente ilustrado, que “explica” o funcionamento do esquema, conforme os dados já disponíveis e publicados pelos jornais.

Dois olhares sobre a notícia

Do ponto de vista de uma leitura superficial, a coleção de reportagens seria suficiente para criar a convicção de que a imprensa está cumprindo bravamente seu papel.

Embora ainda não tenham aparecido os resultados de uma investigação jornalística, pode-se dizer que o leitor mais ou menos atento já tem uma noção bastante clara de como funciona a transferências de dinheiro dos cofres públicos para bolsos privados por meio do esquema aparentemente organizado pelo contraventor Carlos Cachoeira e o senador goiano Demóstenes Torres.

Também deve se consolidar no leitor a sensação de que tal esquema, por suas características primárias, revela a fragilidade dos sistemas de controle do Estado.

Aqui começa uma leitura subliminar que deve merecer a atenção do observador. Se os próprios investigadores são suspeitos, por já haverem ocupado em algum momento o banco que agora é esquentado pelo senador Demóstenes Torres, quem assegura o equilíbrio e a lisura do julgamento?

Sem deixar de considerar que a imprensa cumpre com empenho seu papel de fiscalizar os poderes institucionais, é preciso atentar para o direcionamento de reportagens e artigos que, muito além de apontar culpados, se concentram em demonizar e marginalizar o próprio Estado.

Portanto, é preciso acompanhar a cobertura do presente escândalo com dois olhares: aquele olhar sobre os fatos objetivos, compostos pelos indícios que revelam as culpabilidades, e o olhar sobre intenções subjetivas, de ordem ideológica, que procuram consolidar na sociedade a sensação de que a instituição pública não funciona – mesmo quando se sabe que o ato de corromper quase sempre nasce na iniciativa privada.

* por Luciano Martins Costa no Observatório da Imprensa